Lixo: crônica de Luís Fernando Veríssimo

 Esta é uma crônica retirada do livro O Analista de Bagé, que é uma coletânea publicada  em 1981.

O texto “Lixo”, de Luís Fernando Veríssimo , além de engraçado, vai enriquecer seu vocabulário.

O autor nasceu em Porto Alegre (RS) no dia 26 de setembro de 1936. É escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista de televisão, autor de teatro e romancista. É um dos mais populares escritores brasileiros com mais de 80 títulos publicados. É filho do também escritor Érico Veríssimo.

Apesar de ser um tema sempre atual, na época em que foi escrita esta crônica ainda existia o costume de mandar cartas e telegramas que, hoje em dia, já caíram em desuso.

Ouça o áudio, e depois, faça os exercícios de compreensão oral

Será que acertou todas? Veja as respostas

  • O vizinho encontra no lixo da moradora do 610 Cascas de camarões
  • Os camarões eram  graúdos
  • O vizinho do 612 percebeu que a vizinha brigou com o namorado Pelas flores e pelos lencinhos
  • O número do apartamento da vizinha é 610
  • As personagens conheciam detalhes das vidas dos vizinhos Pelo que viam no lixo
  • O vizinho do 612 recomeçou a fumar Pela morte do pai
  • De acordo com os moradores o lixo é Domínio público
  • As personagens se encontram pela primeira vez Na área de serviço
  • A vizinha do 610 Adora cozinhar
  • O vizinho percebe que a moradora do 610 é do Espírito Santo Pelos envelopes das cartas

Veja a transcrição de LIXO para tirar dúvidas de vocabulário.

Se quiser, também pode assistir ao vídeo. É só clicar You Tube 

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se
falam.

– Bom dia…
– Bom dia.
– A senhora é do 610.
– E o senhor do 612.
– É.

Lixo dos moradores
– Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente…
Pois é
– Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo…
O meu quê?
– O seu lixo.
– Ah…
Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena…
– Na verdade sou só eu.
– Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
– É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar…
– Entendo.
– A senhora também…
– Me chame de você.
– Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champinhons, coisas assim…
– É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra…
– A senhora… Você não tem família?
– Tenho, mas não aqui.
– No Espírito Santo.
– Como é que você sabe?
– Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
– É. Mamãe escreve todas as semanas.
– Ela é professora?
– Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
– Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
– O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
Pois é
– No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
– É.
Más notícias?
– Meu pai. Morreu.
– Sinto muito.
– Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempo não nos víamos.
– Foi por isso que você recomeçou a fumar?
– Como é que você sabe?
– De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
– É verdade. Mas consegui parar outra vez.
– Eu, graças a Deus, nunca fumei.
– Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimidos no seu lixo…
– Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.
– Você brigou com o namorado, certo?
– Isso você também descobriu no lixo?
– Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
– É, chorei bastante, mas já passou.
– Mas hoje ainda tem uns lencinhos…
– É que estou com um pouco de coriza.
– Ah.
– Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
– É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
– Namorada?
– Não.
– Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
– Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
– Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
– Você já está analisando o meu lixo!
– Não posso negar que o seu lixo me interessou.
Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
– Não! Você viu meus poemas?
– Vi e gostei muito.
– Mas são muito ruins!
– Se você achasse eles muito ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
– Se eu soubesse que você ia ler…
– Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
– Acho que não. Lixo é domínio público.
– Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
– Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que…
– Ontem, no seu lixo…
– O quê?
– Me enganei, ou eram cascas de camarão?

Lixo da moradora
– Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
– Eu adoro camarão.
– Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode…
– Jantar juntos?
– É.
– Não quero dar trabalho.
– Trabalho nenhum.
– Vai sujar a sua cozinha.
– Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
– No seu lixo ou no meu?

Vocabulário

Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente…

Neste caso, o correto seria: -Eu ainda não o conhecia pessoalmente…

De acordo com o Dicionário Houaiss: …em algumas partes do Brasil, especialmente na linguagem coloquial, o pronome lhe(s) vem usurpando as funções do pronome oblíquo objetivo direto o(s), em construções como não lhe vi, não lhes reconheço… Isso é chamado de LHEÍSMO.

Se não quiser que a estrutura fique muito formal o melhor é optar por : –Eu ainda não conhecia você. ou -Eu ainda não conhecia a senhora (o senhor).

Pois é – significa que você está afirmando algo
-Você demorou. Pegou muito trânsito?
Pois é. Tinha um acidente na marginal do Tietê.

O meu quê?

Dúvidas quando acentuar ou não que ou porque? Assista ao nosso vídeo You Tube

Reparei que sua família é pequena. Percebi/notei

Más notícias? Notícias ruins? – É o feminino de maus.
Tenho maus pressentimentos.

Carteiras de cigarro – em algumas regiões se diz maços de cigarros.

Vidrinhos de comprimidos – frascos ou recipientes, que muitas vezes são de outro material, mas o nome já ficou generalizado.

Jogado fora – descartado -O vizinho encontrou um cartãozinho jogado fora.

Coriza – secreção do nariz causada por resfriado, alergia ou choro.

Engraçado – é sinônimo de cômico, mas neste caso significa: Que interessante!

Agora, se quiser, deixe a sua opinião nos comentários:

-Você acha que os moradores eram bisbilhoteiros ou estavam interessados um no outro?

Quer continuar praticando compreensão oral? Então veja também: Mitos dos exercícios físicos

Dúvidas ou sugestões?
foneticando.portugues@gmail.com

 

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