Febre de Liquidação

No texto “Febre de Liquidação”, o narrador conta como se sente ao ser tentado pelos preços de remarcação.

O texto é de Walcyr Carrasco, dramaturgo, escritor e jornalista brasileiro. Muito conhecido por escrever o roteiro de novelas como:

Xica da Silva
O Cravo e a Rosa
Sete Pecados
Amor à Vida
Verdades Secretas (2016) – ganhadora do prêmio EMMI

Ouça o áudio, e depois tente fazer os exercícios de compreensão oral. Logo abaixo, deixamos a transcrição pra você tirar dúvidas de vocabulário.

E se preferir, pode assistir ao vídeo com imagens. É só clicar You Tube 

 Transcrição do texto Febre de Liquidação

Passo em frente da vitrine. Observo um paletó quadriculado, uma calça preta e duas camisas polo, devidamente acompanhados de um cartaz discreto anunciando a “remarcação”. Fujo apressadamente pelos labirintos do shopping . Tarde demais, fui fisgado. Mal atinjo as escadas rolantes, inicio o caminho de volta. O coração badala como um sino. A respiração ofegante. São os primeiros sintomas da febre por liquidação, que me ataca cada vez que vejo uma vitrine com promessas sedutoras.

Atravesso as portas da loja, farejo em torno, com o mesmo entusiasmo de um leão vendo criancinhas em um safári. No primeiro momento, tenho a impressão de que entrei numa estação de metrô. A febre já atingiu uma multidão. Os vendedores, cercados, parecem astros da Globo envoltos pelos fãs. Dou duas cotoveladas em uns rapazes com ar de executivos e peço o tal paletó. O funcionário explica que só tem determinado número. Minto:

– Acho que é o meu.

Ele me observa incrédulo. É dois algarismos menor, mas quem sabe? Acho que emagreci 100 gramas na última semana. Experimento. Não fecha. Respiro fundo e abotoo. Assim devem ter se sentido as mulheres com espartilho. Gemo, quase sem voz:

– Está um pouquinho apertado.

– É o maior que temos – diz, cruel.

Decido. Vou levar, apesar da barriga encolhida. O vendedor arregala os olhos. Explico:

– Estou fazendo regime. No ano que vem vai caber direitinho.

De qualquer maneira, só poderia usá-lo no próximo inverno. É de lã pesada, e está fazendo o maior calor. Só de experimentar fiquei suando. Aproveito e levo duas calças, também de lã. O vendedor me oferece o pretexto:

– Esta lã aqui é fininha, esquenta no inverno e refresca no verão.

Sei que nem traje de astronauta é assim, mas deixo alegremente que ele me engane. Pego numa blusa de lã preta que está sobre o balcão. Uma senhora vira-se raivosa e a puxa pelas mangas:

Vocabulário do texto Febre de Liquidação

– É minha, já reservei.

Até minhas mãos estão gotejando, mas insisto:

– Tem certeza?

Ela apanha a blusa e guarda-a embaixo do braço. Deixo a loja exultante, com um belíssimo guarda-roupa de inverno nas sacolas, e vou tomar um sorvete.

Tenho amigas que só se vestem em liquidações. Especializaram-se em comprar roupa de inverno no verão e vice-versa. O duro é que algumas gostam da vanguarda e, como se sabe, a ponta da moda de hoje é a cafonice de amanhã.

 Uma conhecida minha, por exemplo, bota roupa verde-alface quando a moda ordena cor-de-rosa. No ano seguinte, ressurge o pink quando todo mundo está de preto. Outras, mais espertas, só compram mesmo roupa negra. Ok, os papas da costura vivem aconselhando o preto como cor eterna das elegantes etc. etc. Mas  bem que ajuda quem só compra em liquidação.

Mais grave é quando a febre nos atinge numa oferta de sapatos. Certa vez, vi um adolescente se sacrificar pelo preço, ajudado pela mãe. Sem número nas prateleiras o vendedor gorjeou:

– Experimente um menor, a forma é grande.

A mãe concordou. O rapaz saiu da loja com os sapatos nos pés, pulando como saci. O pior é que sinto remorso cada vez que a febre me ataca. Acabo gastando mais do que se tivesse levado apenas uma peça que pudesse usar imediatamente.

Saci-pererê

Concordo que fui precipitado em comprar uma roupa para quando estiver magro, só para aproveitar o preço. Meu regime dura oito anos, sem resultados visíveis.

Desabafo com uma amiga naturalista, que vive apregoando um modo de vida mais simples, sem muitas posses. Ela me aconselha:

– Não compre mais nada. Resista. Aprendi muito quando passei a viver apenas com o necessário.

Revela, com ar culpado:

– Sabe, na minha fase consumista juntei roupa para 150 anos.

Sorrio, solidário. Ela pergunta, por mera curiosidade, os preços da loja. Também pede o endereço. Mais tarde a descubro no shopping, mergulhada na arara das blusas de lã.

Febre de liquidação é pior que gripe, dá até recaída. Com um detalhe: a gente gasta, gasta, e ainda acha que levou vantagem. 

Vocabulário do texto Febre por Liquidação

Este vocabulário é relacionado ao material apresentado. Em outro contexto, pode ter significados diferentes.

Se quiser praticar com este vocabulário, clique aqui FONETICANDO

remarcação – liquidação

fujo – escapo

fisgado – pescado, seduzido

atinjo – alcanço

badala – toca como um sino, se move como um sino

farejar – sentir o cheiro ou a presença pelo faro (olfato de animais)

metrô – trem subterrâneo

astros e estrelas – personagens famosos

cotovelada – golpe com o cotovelo

experimento – provo

abotoo – fecho com botões

arregala os olhos – abre muito os olhos

direitinho – muito bem, perfeitamente, bem feito

suando – transpirando

balcão – mesa ou bancada de lugar comercial

apanha – pega, agarra

o duro – o difícil, o complicado

cafonice – mau gosto

cafona – brega, ridículo

esperta – inteligente, eficiente

espertinho, espertalhão – aquele que se aproveita de outros

atinge – alcança

gorjeou – cantou como pássaro

sacisaci-pererê, personagem do folclore brasileiro, representado por um garoto negro, com uma perna só, que se caracteriza por realizar travessuras, sem consequências graves.

desabafo – confesso, desafogo, expresso sentimentos negativos

arara – estrutura de lojas para exposição de roupas

Exercícios com a segunda parte do vocabulário ➡  FONETICANDO

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